terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cálculo renal

O sangue sai de mim e pra sair é porque já não é mais pulsante ou capaz de fazer pulsar. A vida é mestre em se livrar do que não precisa. Mas tenta sempre aproveitar o máximo que dá antes de descartar. Será possível fazer o mesmo com uma paixão ou um amor? Um dia a urina já foi sangue, o elemento mais precioso do nosso corpo. Mas uma vez decidido que vai virar urina, o corpo, na despedida, trata de reter as coisas boas e dispensar os restos, o tóxico. Uma interessante lição para o ser humano e sua paixão. Por que não se despedir numa ação introspectiva de aproveitar as coisas boas e se livrar das coisas ruins? Talvez o processo de dizer adeus a uma relação, seja qual for, seja doloroso porque estamos inconscientes, nos deixando impregnar pelas coisas ruins da relação. Se alimentamos o ruim, só podemos mesmo nos sentir mal. Aí criamos um outro que não existe. Achamos que ele não gosta da gente, que não se importa, que é fútil, grosso, ou não é tão bom de cama. Criamos essa repetida figura para nos dar um álibi no fim. Mas isso ajuda a não sofrer? Quando se toma consciência do processo da formação da urina passamos a prestar também mais atenção ao nosso sangue. Entendemos que o sangue vai continuar circulando apesar da separação e que aquela fração de que nos despedimos deixou muita coisa importante para continuarmos vivos, para continuarmos como sangue. O resto, pouco importa, virou descarte, virou urina. Continuamos mais vivos depois dessa filtração. Não podemos negar a necessidade vital da formação da urina e do muito que ela deixa para o sangue.

domingo, 16 de novembro de 2014

"Desilusão, desilusão...Dança eu, dança você..."



Uma hora ela bateria na porta. Encheria sua vida de sentido, de paixão, de vontade de mais vida. Danada! A uma hora ela bate na sua porta. Te traz cor, de rejuvenesce, te envaidece. As portas da tua casa estão bem abertas. Mas seu coração, não. Caminho qual não há coração é só um caminho. Um caminho que pode ser bom de se passar. Novas paisagens pra se olhar, novas poeiras pra acumular na botinha suja. Passar, todos passamos. O que se faz enquanto se passa é o que se faz ficar. Abriu sua janela, botou o sol na sua cama, sacudiu o lençol. Foi só visita que bagunçou a estante dos livros. O coração nunca a quis.  Mas agora é hora de fechar a porta novamente.   E acrescentar nessa doce ilusão um prefixo de despedida. Prefixo esse que faz ficar latente por ainda muito tempo todo aquele doce que um dia houve. Junto a uma lágrima, há a incerteza do seu novo caminho.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O coração quer chorar. E não sei bem por qual motivo. Pode ser o ciclo de hormônios, pode ser o dia lindo, pode ser ver você chorando. Pela primeira vez te vi sentir ciúmes. E pela primeira vez senti o que talvez você sentisse quando se via assim meio dividido nos gostares. Tento explicar. Eu não tava precisando, eu não me cansei, ou o outro também não precisa ficar calado quando você liga. Não é isso. Esse amor ao que estamos acostumados nos coloca sempre numa arapuca. Se não falarmos, machuca, se falarmos, machuca. E não sei. Só sei que não quero te machucar. Mas por que  se o amor pode ser grande? E é diferente? Por que não gostar de dois? Não sei. É complicado lidar com isso. Muito. Tentei lidar da melhor maneira, mas parece que só foi boa mesmo pra mim. E o só ser boa pra mim, me faz colher frutos um pouco murchos, quase podres. Frutos de um que já sabe por si só que o lugar dele é meio de lado, e me deixa de lado também, alimentando uma paixão adolescente que não faz bem, e outro, que magoado, acaba se e me machucando. E dói. No fundo, voltamos ao velho clichê: não se escapa à dor, ao sofrimento sim. Ou talvez.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Faz bem pra pele

Se encontraram  num lugar que nem iam imaginar, apesar de se ouvir falar que esses encontros acontecem, ela disse ao longe. Os dois se notaram no lugar. Ele puxou conversa.Ela respondeu cordialmente, como faz sempre. O papo era bom e de repente ela se percebeu paquerando, como há tempos não fazia. Aliás, como quase nunca fizera. Vive a dois- o pensamento veio. Mas não incluiu o par em nenhuma referência, mesmo ele já estar incluído na delicada aliança em seu dedo. Talvez o outro fosse distraído e não percebeu, talvez tenha percebido, mas não se importou. Talvez. Nesse dia não pôde dormir direito. Algo estranho acontecia. Se apaixonava mesmo sendo casada? Como pode isso? No outro dia, acordou sorrindo. Se sentiu mais magra, seus cabelos pareciam mais brilhantes e macios. Como pode essa pele ter ficado menos oleosa assim da noite pro dia? Foi trabalhar. Esqueceu daquilo tudo. Mas sentia que vários homens a olharam interessados nela como mulher naquele dia e não mais como a chefe do departamento. Que estranho! O que há de diferente comigo?-pensou. Deve ser esta camisa caqui e este batom. Esses homens! Uma semana depois voltou despretensiosamente àquele lugar com o marido. Nem se lembrou daquela paquera. E não é que ele estava lá? Pôde perceber a surpresa e a frustração nos olhos dele ao vê-la entrar acompanhada e sorrindo com seu vestido e os cabelos soltos. Ela também não soube se encaixar mais naquele vestido. Mas, o que está acontecendo comigo? Ele saiu, não se falaram. Ela percebera tudo: se apaixonara por um desconhecido. É natural. Acontece. Não é nada. Devo me controlar. Também não devo encontrá-lo mais, consolava-se. Dias depois em outro lugar se encontra com aquele olhar que conhecera. Os olhos se sorriram. O abraço veio. A conversa foi. O vestido, o cabelo, a pele, todos juntos naquele ser desabrochando para a vida. Não se culpe, disse ele. Não foi nada premeditado, é só um beijo. O que é um beijo afinal? Ela pensava. Não é nada. Nada? Não poderia ser apenas nada. Um beijo é muito. Se sentia vaidosa ao escutar aquele homem desejando-lhe. Não imaginava mais isso. Era adolescente mais uma vez. Borboletas no estômago e todos os homens na rua tinham a cor de seus cabelos. Mas não era ele. A culpa cresce. Como dizer ao marido: foi apenas um beijo? O que ele vai sentir? O que ele vai fazer? Arriscado demais isso tudo. Mas como foi bom se sentir assim outra vez. Como pode se sentir culpada em fazer-se bem? Como pode se sentir bem fazendo apenas se sentir bem? Não tá certo. Não tá nada certo. Não quer machucar ninguém, mas também não quer se machucar. Desejo demais reprimido não pode sustentar uma vida de verdade. Aquela boca lhe convidara para algo mais, ela repelia. Aqueles olhos a viam como mulher. Como mulher, não como menina! As mãos se compreendiam. E fora apenas um beijo! Ah, doce mulher, quando é que o mundo vai se abrir e te deixar sair desse vestido de menina? "O que você fez com sua pele? Ela está linda?" Ah....amar faz bem pra pele, disse, pensativa.

sábado, 16 de agosto de 2014

Dançar a vida

A vida é feita pra dançar. Não sabia? Há tantas mulheres por aí que se vem assim, floridas, vivas. E tantos homens também. Meu ângulo é feminino. Quem sabe não juntamos os vários ângulos possíveis pra fazer esse relato? Mas deixa eu dançar.Tenho aprendido a me deixar ser mais leve, a ir com os passos escorregando, pra não machucar demais o joelho. O escorregar é com tudo. A gente pode ir mais devagar, rasteirinho, pra ir junto, pra estar presente. Há tantas mulheres nessa vida que estão sós, estando acompanhadas. Essas margaridas que vão perdendo a cor da vida. Não tem porque se deixar despetalar. Não tem porque se deixar podar. A não ser que seja uma poda pra se fazer crescer, fortalecer. Na vida a gente tem que dançar. Deixar pra lá tanta parafernália que fomos criando com o tempo humano. Voltar às raízes. Já dizem muitos. Já disse Thoreau, Wilthman e Manoel de Barros. Os homens são por mim também citados. Voltemos às nossas raízes. Nos comuniquemos mais. Sejamos conscientes de nossos vícios, de nossos erros, de nossas limitações, tiremos todas elas pra dançar. Façamos um grande baile, com muita alegria! Deixemos nos encontrar com outros pares se nossa alegria junto não cresce. Sejamos soltos, sejamos flor, folha e fruto. Bailemos a música magnífica do existir e mais nada. Cada coisinha que fazemos, coisinha humana, acrescentemos à nossa sabedoria universal de ser vivo. Mas não nos deixemos enganar. Somos ser vivo. Ser humano é distrativo. E mais nada. A gente gosta mesmo e se satisfaz é com o básico. É com a raiz. É dançar, sentir o outro, comer, sentir o vento, andar, comunicar, sonhar... coisas raiz. Isso não passa. E o básico é direito. O básico é luta. O resto, deixa ir. O resto é resto e te complementa. O que você é mesmo é o que faz com sua raiz e como a faz. Viva as margaridas e os homens folha! Dancemos!

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Alguém da fronteira

A vida inteira me senti na fronteira. Já explico.
Vim pro Brasil muito cedo, com três anos de idade. Nasci no Equador. E lá deixei avós, primos, tios e até cachorrinha. Enfim. Na época mal sabia o que acontecia. Devia ser tudo festa pra mim. Ou não. Não tenho essas lembranças. As primeiras lembranças de quando estive aqui no Brasil foi dos primos brasileiros me enchendo o saco. Seria o primeiro sinal de como seria ao longo da vida minha relação com a família do meu pai. E também os primeiros sinais de que jamais eu iria me sentir de algum lugar. Sempre da fronteira. Pro lado bom e pro mais ou menos. Misturar palavras em espanhol, não ter primos mais chegados por perto, não saber o que é comida de vó nos dias de domingo...É um pouco do estranhamento de não se estar na terra em que se nasceu. Mas ao voltar pra terra natal, as coisas não melhoram. Quando se é pequeno é tudo festa. Lembro de ensinar meus primos equatorianos algumas palavrinhas em português enquanto eles também faziam o mesmo com o espanhol pra mim. E era divertido! Passados uns anos, fomos crescendo e as voltas pra lá cada dias mais raras. A distância aumentando. Me sinto com família lá, muito amada e amável, mas voltar é sempre estranho. Sou a brasileira. Não entendo as piadas internas e por mais que tente, não consigo acompanhar as conversas e não é porque não entenda e não fale espanhol. Mas a convivência e o estranhamento acabam deixando as coisas assim. O abraço é estranho. Digo isso pelos primos. Tias e avós são outros 500. Me sinto em casa. E o mesmo acontece por aqui no Brasil. Não me sinto totalmente brasileira. E me dá raiva de como o Brasil se acha o país da América do Sul. Brasil está de costas pra América do Sul. Aí aqui neste país cresci a vida inteira em Minas Gerais. Moro agora em Curitiba. Me sinto de fronteira novamente. Não sou desta terra. Não entendo muito bem as pessoas daqui. Não gosto. Não é aqui que quero passar meu tempo. E acho que assim, no se ver como de fronteira, que a identidade cresce. É aí que pode-se perceber mais claro o que não se é. A partir do "não ser" é que se começa a ser. No fim, o que sou mesmo é mineira e latinoamericana. Ou como diz Milton: "Sou do mundo, sou Minas Gerais"!

terça-feira, 29 de abril de 2014

A gente fica visualizando a vida meio que na janela meio que com pé na porta. Janelas demais pra pouca vida. Ando me esquecendo das coisas verdadeiramente desimportantes. E isso me dá uma certa dor no coração, amolecendo os olhos. Também não é pra tanto: ainda não perdi a cabeça. Tem alguns momentos de vigília que me lembro de tudo. Me lembro dos avós, da minha mãe, do meu irmão mais próximo. Mas aí novamente vou entrando na roupa usada, velha e rasgada de ser eu. Por fim, acho que é por isso que gosto tanto de dormir. Pra experimentar outras roupas, quiçá. É tudo covardia, já diria. E não deixa de ser. Metida nessa casa gelada, vendo rede social, esvaziando de sentido tudo que era cheio de cor. Tenho que aprender o som de ser tranquila. O som... Comigo é sempre reviravolta. E vai cansando. Depois encontro qualquer sossego e me dou por feliz. Todo mês me lembro. Todo mês sinto saudades. As roupas estão tomando sol no varal. Tirar o mofo. Quem sabe não me penduro ali também, atravessada pela alma? Quem sabe... O vento tocaria meus dedos, meus pelos. Os pedreiros olhariam assustados. Me respeitem, sou uma mulher atravessada no seu próprio varal. Nem a casa de uma mulher os homens respeitam mais. Já cedemos a rua, agora a casa? Esse mundo cansa demais. Fico aqui arrotando sentimentos e melancólicas enquanto o mundo tá se fudendo. E eu, o que faço com meus sonhos? O que faço pra deixar o dia mais bonito pra nós, passarinho? O que faço pra dar asas pros seus sonhos serem mais soltos, seu riso mais fluido. Cada um vivendo a beleza e a dor de ser quem é. Sem se esquecer muito de si. A gente vive é na brecha. E isso cansa, lutar pela brecha. Sei que exagero. É só a baixa progesterona falando. Mas é som das entranhas, então deve de ser sincero, creia. Creia, mas não creia tanto. Mulher é bicho maluco.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Já falei da nova fase? É nova. Tenho medo e paixão. Fico sempre me preparando. Limpo o computador. Tiro sujeira do navegador. Invento bloquinhos de papel e virtuais. É o meu ritual de preparação. Dá frio na barriga. Serão tempos de muito estudo. E não quero me perder entre tantas pedagogias. Sair do mundo de carne e osso. Esquecer minha prosa e poesia.
É tarde da noite. Ele já se deitou. Nessa nova fase em que invertemos os sonos um do outro. Ah, mas eu ainda levanto tarde e ele cedo. Acho que isso também faz parte do ritual. Me treino para conseguir a produtividade que vem pela frente. Só não me deixem virar máquina.
Pensei que podia ter algo mais pra falar. "Penso renovar o homem usando borboletas!" Ele disse. E é algo mais pra falar. Acho que todos os dias vamos nos renovando com pequenas borboletas. Ok, de noite podem ser as mariposas. A gente deve entrar em casulos diariamente. Mas quando acordamos, esquecemos disso e lembramos da gente. Se ao invés disso a gente balançasse um pouco mais a cabeça antes de levantar da cama o plano do Manoel de Barros estava dado. Mas não. Logo nos esforçamos de saber onde estamos, limpar a remela, lembrar da agenda. E pronto: vestimos a roupa de ser o que somos. Tinha que ser apenas um brinco. O principal seria novo. Ou não seria nada. Apenas um perfume seria o ontem, o anteontem. Uma essência que agrega, mas não completa. O principal seria o nu. E pra isso, teríamos que entrar mais no casulo. Fazer esse exercício toda noite. Penetrar na nossa bobeira onírica e simplesmente esquecer. Memória de borboleta.
Quem sabe...

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

As veredas do Grande Sertão


O livro Grande Sertão: Veredas tem uma história além de suas páginas pra mim. Comecei a lê-lo no fim de 2008, numa época de minha vida de pura poesia e encontro. Em janeiro de 2009 fiz uma viagem de uma semana e não quis levá-lo comigo. O exemplar que tenho é bem delicado e com certeza iria ficar mais danificado do que ficou sem o ter levado. Bem, ele não me acompanhou. Voltei e não o terminei e já estava pra lá da metade. Mas fiz bem. Não tem como interromper sua leitura. Ela tem que ser algo fluído, contínuo, como o sempre ir do rio, assim podemos de verdade nos enamorar pelo seu enredo.

Voltei a ler neste ano, 2014, aproveitando meu grande tempo de férias. Agora sim, li direto, com no máximo um dia de intervalo. E o que digo é que terminei o livro com muitas lágrimas desde sua décima página final. Pra mim, hoje, fez muito mais sentido que há anos poderia fazer. Já conheci alguns lugares que estão no livro, já cruzei o velho Chico e me imaginei na canoa de Riobaldo e Diadorim quando pequenos também na sua travessia, já comi algumas das comidas da história e principalmente já senti os jeitos da gente sertaneja, dos gerais, da caatinga e dos barrancos...

Bem, Guimarães Rosa pede em uma nota do livro que quem já o tiver lido ou for escrever sobre o mesmo, não fale sobre a ordem do enredo, pra não estragar a grande surpresa que ele reserva em seu final. (Será no final?) Respeitando isso, o que vou escrever aqui é mais sobre o sentimento que o livro pode nos trazer.
Pra mim é uma obra completa. Está entre meus livros preferidos. E não só livros, mas entre qualquer outra obra humana preferida, incluindo comida. E olha que, pra quem me conhece, eu sou uma grande apreciadora culinária. Assim, o prazer desse livro se assemelha a um bom feijão tropeiro. É uma comida simples, sertaneja, mas é completa, tem tudo o que você precisa: poesia, natureza, amizade, liberdade, diversão, amor, filosofia, superação...

Lendo o Grande Sertão: Veredas a gente se depara com uma poesia fina. Ela está nas palavras inventadas por Guimarães Rosa e na própria ordem com que ele ajeita as mesmas nas frases. À primeira vista a sua leitura é estranha. Dizem que é um filtro dos leitores mais persistentes: “É preciso ter coragem!”. Mas logo nos acostumamos e vamos tomando parte da singela poesia desta obra prima. Como diz Manoel de Barros, poesia não é pra se entender, é pra se sentir. Tente captar você o que quero dizer quando o livro é cheio de poesia, lendo o livro!

A natureza no livro, como diz um grande amigo meu, Joubert dos Santos, é uma personagem do enredo. Ela ganha vida pelo olhar de Riobaldo e interage com ele. Rosa faz comparações e analogias com a natureza para tudo. Assim, em momentos de grande prazer e relaxamento, os pássaros lindos desse sertão gerais tomam conta dos olhos, ouvidos e coração de Riobaldo e de nós, seus acompanhantes.  Assim como nos momentos sombrios, são as corujas, por exemplo, que aparecem. Não só os pássaros, as grandiosas árvores, as veredas, os rios... Tudo faz parte dessas páginas maravilhosas. E no meio do sertão nos projetamos rapidamente, mesmo que você nunca tenha pisado em semelhantes terras. “O sertão está na gente!” É a sensação que prevalece. Todas aquelas paisagens onde se dão grandes lutas, onde florescem grandes amores e amizades vem pra dentro da gente e tomam conta.

As histórias do jagunço Riobaldo, Tatarana, Urutu-Branco não seriam as mesmas sem os encontros da vida, sem as amizades. E todos são assim, não é? Riobaldo é bicho cabreiro, não é qualquer um que ganha nobres afetos de sua parte, bem sabe o Hermógenes, também jagunço e inimigo de Riobaldo, pelas entranhas. Ou Diadorim, Zé Bebelo e Compadre seu Quemelém, no lado oposto, na mais forte e leal amizade:

“Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, pra mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudar, ainda que sendo o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual ao igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou- amigo- é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”

Durante toda história se acompanha as grandes e pequenas reflexões de Riobaldo, jagunço, mas que nem sempre foi jagunço. “Jagunço não escolhe ser jagunço.” Ele foi menino que pagou promessas por se curar de doença, viveu em grandes fazendas quando sua mãe morreu, estudou e tão bem estudou que virou professor. Mas, por destino e por sua escolha, seguindo, enamorado por uma canção de Suruiz, jagunço também, virou um deles, do bando dos medeiros. E a verdade é que a imagem do jagunço encanta a todos que passam pelo livro. Acredito que o jagunço faz parte do imaginário do sertanejo ainda hoje, lembrando cabras destemidos, que são leais e tem sua própria ética para a justiça. As coisas não são como Riobaldo confessou querer que fossem: o mau apartado do bom, as coisas umas separadas das outras. O paradoxo de saber que os jagunços praticaram muitas maldades como mortes e estupros e ao mesmo tempo admirá-los por sua braveza existe e é perpetuado nesta obra de Guimarães Rosa. Nós mesmos ao lê-la não amamos e odiamos os jagunços?

Acho que nos apaixonamos por Riobaldo pelo nível de sinceridade com que ele conversa com a gente. Pra nós ele é um todo transparente. Mergulhamos na sua vereda de ódio, de amor, de dúvida. Questionamo-nos com ele sobre os valores da amizade, do bem e do mal, de Deus e do demo, da existência ou não do destino. Percebemos que a vida é imensa e sempre tem algum segredinho, alguma surpresa que necessitamos ainda de descobrir, por nós mesmos, com nossas pernas. Ele nos encoraja a isso:

“Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade. Mas liberdade-aposto- ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.”

É claro que não se pode falar deste livro sem tocar no amor. O amor empapa essas histórias. Seja pelo amor de Riobaldo por Diadorim, por Otalícia, por Rosauarda, Nhorinhá... seja pelo amor que existe entre os jagunços, traduzido por lealdade. Ou ainda o amor que emana de um pequeno passarinho: o manuelzinho da crôa. Amor esse que Riobaldo aprendeu a perceber com Diadorim. Enfim, Riobaldo nos ensina que a vida dá voltas e que o amor é grande. Mas fica o sentimento de um amor impossível, tão triste. Será que devemos deixar os amores serem tão impossíveis assim? Mas, ah!,  a vida tem alternativas e no coração tudo cabe.

“Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.”

Vale dizer que tudo isso contado é requintado pelo grande humor de Guimarães Rosa. Há várias passagens divertidas. Jeitos de falar engraçados, causos e anedotas. Tem de tudo! É uma escrita alegre, de pazes com a vida. E por isso que faz tão bem. É muito divertido o conflito que Riobaldo tem com o demo, o Sisudo, o sempre sério, o Cujo, não sabendo se vendeu ou não a ele sua alma nas Veredas-mortas. Como se pode ter dúvida ou acreditar nisso? Ou então as repetidas vezes que Riobaldo define o viver: é ou não é muito perigoso. É? Não é? Ou com as diversas definições do demo e do sertão. É um eterno cutucar de espírito que Rosa propõe. Uma reflexão sobre a vida, sobre nossos valores, sobre os paradoxos e intolerâncias e sobre nosso humor, nossa gana de viver.

 Enfim, deixo convite a conhecermos essa obra clássica da literatura brasileira. Sua história é simples, está no imaginário popular, mas o que vale é a travessia, não a chegada. Garanto que terão grandes surpresas e prazeres com esse livro tropeiro!


“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito-por coragem. Será?”

sábado, 4 de janeiro de 2014

SMS. Bate papo. Hangout. Skype.

Há quanto tempo de distância estamos nós nessa nossa vida?

 Como sabemos lidar com a "solidão"?

A meu ver, não sabemos. Não aproveitamos o momento de estarmos apenas consigo mesmo pra refletir, pra repensar, pra replanejar, re-atuar. São intervalos dos outros. Intervalos pra si. Quando a gente deveria se olhar mais. Em vez disso, nos cercamos de segurança de ter o outro por perto. Não ajuda. Não vai pra frente. Cansa, mata, o amor. Amor é pra se tecer livre de carências. Livre de inseguranças.

Não sei amar além da necessidade das palavras. E por que precisar tanto delas? As palavras nem sempre dizem o que parecem dizer, mas mesmo assim nos seguramos no que elas aparentemente dizem, o que queremos ouvir. O problema está na necessidade. No abuso da liberdade do outro. Da vida própria. Da descoberta solitária.

Quanto realmente produzimos de novo? Para nós mesmos, para o mundo? Quanto tempo gastamos querendo nos entender, nos repetindo, reclamando?

Tanta coisa que não tá certa nessas necessidades. Nessas necessidades que exigem, que aprisionam, que nos adoecem.